quinta-feira, 23 de maio de 2013

Pontes de raízes vivas.....!!!


Nas profundezas do nordeste da Índia,
num dos lugares mais úmidos na terra,
as pontes não são construídas - vão crescendo.



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Cresceram das raízes de uma seringueira.
O povo de Khasis Cherapunjee Betel usou troncos de árvores,
cortadas ao meio e ocos por dentro, para criar o "sistema-raízes de orientação."

Quando chegarem ao outro lado do rio,
estarão em condições de criarem raízes no solo.

Dando tempo suficiente, uma robusta ponte viva é produzida.

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As pontes de raízes,
algumas das quais com mais de cem metros de comprimento,
levaram entre dez a quinze anos para se tornarem totalmente funcionais,
sendo extremamente fortes.


Algumas podem suportar o peso de 50 ou mais pessoas ao mesmo tempo.


Uma das estruturas de raízes mais original da Cherrapunjee
é conhecida por "Umshiang Double Decker-Root Bridge".

É composta por duas pontes sobrepostas !



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Porque as pontes estão vivas e ainda a crescer,
ganham força ao longo do tempo
e algumas das pontes-raízes antigas ainda são usadas diariamente pelo povo das aldeias à volta de Cherrapunjee, que podem ter bem mais de 500 anos.
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Mas não são estas as únicas pontes construídas a partir de plantas em crescimento.
O Japão também tem a sua própria forma de pontes-vivas.
Estas são as pontes da Vinha Vale de Iya .....




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Um dos três "vales escondidos do Japão" ,
West Iya, é um desfiladeiro cheio de neblina, rios claros e telhados de colmo,
do Japão de séculos atrás.

Para atravessar o rio Iya, num vale com terreno áspero,
bandidos, guerreiros e refugiados criou-se algo muito especial
- um tanto instável - a ponte feita de vinhas.



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Este é um quadro de 1880 de uma das pontes de videira original.
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Primeiro, duas vinhas Wisteria - uma das mais fortes vinhas conhecidas –
foram cultivadas nos extremos dos dois lados do rio.
Quando as videiras alcançaram comprimento suficiente,
foram entrelaçadas com tábuas para criar uma flexível, durável e,
a mais importante obra viva da engenharia de botânica.



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As pontes não tinham proteção lateral, e uma fonte histórica japonesa diz que as pontes de videira originais eram tão instáveis que os que tentavam atravessá-las pela primeira vez, muitas vezes ficavam petrificados no lugar, incapazes de prosseguir.
Três dessas pontes permanecem no Vale de Iya.


Enquanto algumas (embora aparentemente não todas) foram reforçadas com fio e grades, ainda são angustiantes de atravessar.

Mais de 140 metros de comprimento, com pranchas colocadas a cerca de 30 a 40 cm de distância entre si.... definitivamente não são para acrofóbicos.



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Acredita-se que as pontes de videira existentes
foram inicialmente cultivadas no século 12,
o que as tornaria, nos mais antigos exemplos de arquitetura viva no mundo.






IV
Zaratustra, no entanto, olhava a multidão, e assombrava−se.
Depois falava assim:

"O homem é corda estendida entre o animal e o Super−homem:
uma corda sobre um abismo; perigosa travessia,
perigoso caminhar; perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.

O que é de grande valor no homem é ele ser uma ponte e não um fim;
o que se pode amar no homem é ele ser uma passagem e um acabamento.

Eu só amo aqueles que sabem viver como que se extinguindo,
porque são esses os que atravessam de um para outro lado.
...
Amo os que não procuram por detrás das estrelas uma razão para sucumbir e
oferecer−se em sacrifício, mas se sacrificam pela terra, para que a terra
pertença um dia ao Super−homem.
...
Amo o que se envergonha de ver cair o dado a seu favor e, por essa razão, se
pergunta:
"Serei um jogador fraudulento?", porque quer ir ao fundo.
...
Amo aquele cuja alma é profunda, mesmo na ferida,
e ao que pode aniquilar um leve acidente,
porque assim de bom grado passará a ponte...”


Friedrich Nietzsche - Assim Falou Zaratustra

sexta-feira, 10 de maio de 2013

LIVROS DIDÁTICOS CATÓLICOS: O ENSINO RELIGIOSO E A DISCRIMINAÇÃO DE RELIGIÕES AFRO-DESCENDENTES


GUEDES, Maristela Gomes de Souza – PUC-Rio
GT-12: Currículo
Agência Financiadora: CAPES

1 - Introdução: mais um desafio

O diálogo que tento fazer através desse texto é sobre mais um desafio, além dos muitos com os quais já lidam professores e professoras em todo país. Mas penso no tema desta 31ª Reunião da ANPED “Constituição Brasileira, Direitos Humanos e Educação” e me animo a fazê-lo.

Em agosto de 2007, foram lançamentos os livros católicos: “As Obras de Deus
Criador” e “O fato Cristão”. A organização é da Arquidiocese do Rio de Janeiro, a
coordenação geral é de Dom Filippo Santoro e a publicação é da Editora Vozes com colaboração da entidade alemã Adveniat-Essen. Segundo Dom Filippo, os livros foram produzidos de acordo com os pressupostos fundamentais da Arquidiocese. Em uma revisão detalhada do material, o Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eusébio Oscar Scheid, assegurou que o conteúdo é compatível com as diretrizes da Igreja da cidade. Logo depois foram lançados “A Igreja de Cristo” e “Os sinais do Espírito”.

Nenhum problema, não fossem essas publicações Livros Didáticos Católicos de
Ensino Religioso Confessional. Os dois primeiros destinados ao 1º e 2º ano e os dois últimos, ao 4º e 5º ano do Ensino Fundamental. Na ocasião, em artigo publicado no Jornal O Testemunho de Fé, Dom Filippo, que é Bispo da Educação e do Ensino Religioso, afirmava que “os livros estão sendo muito apreciados também fora do Estado do Rio, por sua simplicidade e seu conteúdo bonito”. Pudera, o principal ilustrador dos livros é o famoso cartunista Ziraldo.

Os livros surgiram pela brecha aberta através da lei estadual 3.459/2000, que
regulamentou o Ensino Religioso como confessional, nas escolas do Rio de Janeiro.  

As obras desrespeitam a Constituição, 
burlam a própria lei do Ensino Religioso, 
discriminam religiões afro-descendentes 
e representam um retrocesso em importantes
conquistas de educadores e educadoras preocupados (as) 
com a diversidade do país

Por onde quer que se olhe a situação é absurda, mas vamos por partes e sem nenhuma pretensão de esgotar aqui o assunto.

2 - Discriminação e retrocesso
Logo no começo dos quatro volumes estão as “saudações cordiais” assinadas por Dom Eusébio Scheid. A primeira, destinada às crianças (católicas evidentemente porque o livro é para católicos), diz: “Queridas crianças, prediletas de Jesus, esse livro se dedica com carinho e amor só a vocês... que bem merecem essa dedicação de desenhistas, escritores e do professorado”. 

Aqui, estão excluídas da “predileção de Jesus e do professorado”, todas as outras crianças não-católicas, inclusive as evangélicas, as kardecistas e mesmo algumas de religiões afro-descendentes que podem, dependendo de sua casa de santo, tanto amar Iansã, orixá do vento, como Jesus, filho de Deus. Está aí a
famosa Mãe-de-santo Beata de Yemonjá que não me deixará mentir. Já na saudação dirigida aos pais, o ataque vai na direção das famílias que não se encaixam no modelo cristão. “Uma família em que o nome de Deus não é invocado ou, nem mesmo citado, é uma família sem perspectivas de esperanças perenes e duradouras”.
 
Há famílias que passam o dia a repetir “Xangô meu pai”, “Ogum meu pai” e outras tantas para quem nenhum Deus, santo ou orixá fazem o menor sentido. Para essas não há perspectivas e esperanças de qualquer tipo?

O problema não se limita ao campo religioso. Na página 15 do volume “As
obras de Deus Criador” a discussão sobre a família continua, representada pela seguinte ilustração: uma família, branca, o pai vestido para o trabalho e a mãe para uma festa com maquiagem e colar de pérolas, impecáveis. Todos, inclusive o cachorro, possuem um computador e um sorriso igual. Que família de escola pública se parece com esse comercial de margarina? E mesmo fora da escola pública? Na página 17 está escrito que “o mês de maio é dedicado a Nossa Senhora, para celebrar o modelo ideal de mãe: a mãe que é dedicada à família e que está próxima dos seus filhos em todos os momentos”.

Não são ideais, portanto, as mães que trabalham, estudam e que, ainda assim,
cuidam da família e que, justamente por tudo isso, possuem tantas jornadas de trabalho.

Há quanto tempo professores e professoras se esforçam para que as representações de famílias nos livros didáticos contemplem a diversidade das famílias brasileiras? Mães e pais separados, famílias negras (onde o negro não esteja em papel subalterno), casamentos inter-raciais, mães que trabalham e que dividem o sustento da casa com o marido ou, ainda, mães que sustentam os filhos sozinhas ou pais que também fazem esse papel sozinhos. A visão de família apresentada nos livros católicos não contribui para nenhum dos avanços ainda necessários nesta área, pelo contrário, significa um grave retrocesso.


3 - Desrespeito ao povo-de-santo
Na página 56, do volume “A Igreja de Cristo”, destinado ao 5º ano do ensino
fundamental, há uma afronta declarada aos praticantes de religiões afro-descendentes.

Diz o texto: “A umbanda não faz uso de sacrifícios de animais em seus rituais, porque respeita a vida e a natureza”. A afirmação, além de equivocada, discrimina. Quem diz porque é o presidente da Associação Brasileira dos Templos de Umbanda e Candomblé, Pai Guimarães de Ogum: “A Igreja católica possui carismáticos e progressistas, cada um com suas particularidades, mas publicamente, todos se assumem como católicos. A umbanda também tem vertentes, cada uma com suas características próprias. A umbanda é uma religião brasileira que mistura pajelança, candomblé, kardecismo, catolicismo, xamanismo, orientalismo cigano. Cada casa vai desenvolver uma linha mais de acordo com seu dirigente, mas todas são umbanda. Nas mais próximas ao
candomblé haverá a oferta de animais. A identidade umbandística não é definida por se fazer ou não essas oferendas, mas pela relação com as entidades e com o divino. A igreja católica, na hora da comunhão, oferece uma hóstia, para ela sagrada, mas que para nós, pode não passar de uma simples folha de papel. Na nossa comunhão oferecemos o animal. As partes que não podemos comer vão para os despachos, a que comemos alimenta o corpo e o espírito da comunidade porque é uma carne que foi vibrada com a energia, é o ageum, o alimento consagrado pelos orixás”, revela o umbandista.

Para ele, as religiões afro cometeram durante vários anos um erro anti-ecológico por conta dos resíduos dos despachos que permanecem na natureza, mas o livro despreza o esforço que estas religiões já fazem para mudar esse aspecto do culto.

Guimarães também discorda do Ensino Religioso nas escolas públicas. “O estado é  laico. E, se alguém tinha de escrever sobre a umbanda, nós deveríamos fazer isso e não os padres. Além disso, tudo não passa de uma grande hipocrisia.

Quase todo mundo come churrasco, inclusive católicos então isso não é sacrifício? Pelo menos nós rezamos antes de comer”, afirma. Se não há uma única posição sobre esse ritual nos terreiros de umbanda, ao optar por uma das vertentes e criticá-la, o livro discrimina as outras posições da umbanda e, mais abertamente ainda, o candomblé do qual o ritual das oferendas de animais é parte integrante.


4 - Planejamento inclui missa nas escolas
Em todas os volumes, logo após as saudações há o espaço denominado “caro
professor”. São 11 itens que definem um calendário de atividades e conteúdos para o professor de Ensino Religioso. Em maio de 2007, quando o Papa Bento XVI esteve por aqui, os principais jornais do país, divulgaram a tentativa do pontífice em fechar um acordo (o termo oficial é Concordata) entre o Brasil e o Vaticano para regulamentar os direitos da Igreja no país, que já vem sendo negociado há algum tempo e contempla o patrimônio, o ensino e a formação religiosos. Os jornais divulgaram a firmeza do presidente Lula, que não assinou o acordo por defender o Estado laico, e a frustração de Bento XVI que este teria voltado à Roma prometendo insistir no assunto.

A Constituição brasileira garante a liberdade de crença e separa Estado e Igreja,
mas prevê o ensino religioso no país, o que é uma gritante contradição. Ainda assim, apesar de modificado, o artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, assegura a diversidade religiosa e proíbe qualquer forma de proselitismo, que, segundo o dicionário Houaiss é “atividade ou esforço de fazer prosélitos (convertidos), catequese, apostolado”. O parágrafo segundo desse artigo diz que os sistemas de ensino ouvirão as entidades religiosas para a definição do conteúdo da disciplina Ensino Religioso. Ora, o governo do Estado do Rio não se limitou a ouvir a Arquidiocese, mas simplesmente conferiu a esta ampla e total autonomia para confeccionar seu próprio e exclusivo material didático. Não é à toa que o planejamento em questão prevê, entre outras coisas, missa de Pentencostes nas escolas e aulas sobre a campanha da fraternidade.

Trata-se de uma vitória política retumbante da Igreja Católica. Para quem ainda
não entendeu a dimensão da coisa, é preciso dizer que o tema da Campanha da
Fraternidade deste ano é: “Fraternidade e Defesa da Vida”, e o lema “Escolhe, pois, a vida”. Genérico? Pelo contrário. Em sua mensagem dirigida à CNBB por ocasião do lançamento da Campanha deste ano, o papa Bento XVI afirmou que “todas as ameaças à vida devem ser combatidas”. “Renovo a esperança de que as diversas instâncias da sociedade civil queiram solidarizar-se com a vontade popular que, na sua maioria, rejeita todas as formas contrárias às exigências éticas de justiça e de respeito pela vida humana desde seu início até o seu fim natural”, disse o pontífice. Ainda não está claro?

Talvez Dom Jacyr Francisco Braido, bispo de Santos, seja mais contundente: “A escolha do tema deste ano é a expressão da preocupação com a vida humana, ameaçada desde o início pelo aborto até sua consumação com a eutanásia.

Tema preciso e desafiador!
Somos colocados diante de uma escolha entre a morte (aborto e eutanásia) e a vida”.
(www.cnbb.org.br consultada no dia 10/4/2008, às 20h27min).

O acordo pretendido entre a Santa Sé e o Brasil, apesar de divulgado pelos
jornais, mantém a totalidade de seu conteúdo em sigilo até que haja consenso entre as partes. Pelo que foi divulgado e, como a oferta do Ensino Religioso no Brasil já é obrigatória por lei, podemos concluir que, mesmo esse equívoco na nossa lei não basta para o Vaticano. Seu desejo é aprofundar o nosso erro, garantir a exclusividade total do ensino católico e retirar a possibilidade de opção do aluno. Como disse, os jornais alardearam a frustração do Papa e a defesa intransigente de Lula da separação Igreja-Estado. Para mim, tudo não passou de encenação. Enquanto a imprensa divulga que o Brasil continua laico, no Rio de Janeiro, os mais caros princípios católicos estão impressos em caríssimo papel couché, belamente ilustrados e distribuídos nas escolas
públicas. Não estranhemos se os próximos volumes desses livros didáticos condenarem os métodos contraceptivos, a união civil entre pessoas do mesmo sexo, a pesquisa com embriões humanos, o divórcio. Tudo isso faz parte da Agenda do Vaticano. Não mencionei a eutanásia porque o volume “Os sinais do Espírito”, no capítulo “Um jeito novo de ser responsável na Igreja”, lemos: “Escolha candidatos competentes que tenham boa conduta pessoal e sejam coerentes. É indispensável, ainda, que sejam comprometidos com a ética social, com os valores cristãos, com o resgate das dívidas sociais e com as posições defendidas pela Igreja, tais como: o ensino religioso nas escolas, a condenação do aborto, dos jogos de azar, a eutanásia, etc.” 

E pensar que, ainda em sua visita ao Brasil, Bento XVI pediu que a Igreja ficasse longe da política.

Percebe-se que a restrição diz respeito apenas aos setores progressistas da política porque política conservadora pode. O Estado do Rio de Janeiro é uma paróquia do Vaticano.


4. 1 - Diversidade continua como exceção
Que a maioria das escolas públicas do Estado se pareça com igrejas não chega a
ser novidade. Em quase todas, os cartazes das Campanhas da Fraternidade já
freqüentavam as paredes. Para Forquin (1993), a escola é também um “mundo social”, que tem suas características de vida próprias, seus ritmos e seus ritos, sua linguagem, seu imaginário, seus modos próprios de regulação e de transgressão, seu regime próprio de produção e de gestão de símbolos. Esta realidade constitui para ele a “cultura da escola”. Antes da aprovação da lei do ensino religioso, a hegemonia do catolicismo já estava entranhada na “cultura da escola”. As celebrações são cristãs, em geral, Páscoa e Natal e, já deixou de ser incomum, que o “Pai Nosso” seja rezado nos inícios de turnos. Forquin
também trabalha com o conceito de “cultura escolar”, ou seja, o conjunto de conteúdos cognitivos e simbólicos que, “selecionados, organizados, normalizados, rotinizados, sob o efeito dos imperativos de didatização constituem habitualmente o objeto de uma transmissão deliberada no contexto das escolas”. (Forquin, 1993, 167).

Depois do ensino confessional, cimentada nas grades curriculares das escolas da
rede pública do Rio de Janeiro, a educação religiosa (agora a católica e a evangélica) é reforçada e legitimada também no que Forquin chama de “cultura escolar”. Mas a hegemonia da primeira não chega a ser ameaçada. No calendário previsto pelos novos livros didáticos todos os marcam festividades católicas sendo que, para caracterizar o que a Igreja chama de “diálogo inter-religioso”, no mês de abril também se comemora o dia do Índio; em setembro, o ano novo judeu e, em novembro, claro, Zumbi dos Palmares. Tirando a comemoração judaica, as outras duas já existiam. A novidade é o aumento significativo das festas católicas. Para se ter uma idéia, em junho vai se comemorar o Dia do Papa e, em agosto, o Dia do Pároco. Não é à toa que muitas crianças de religião afro-descendentes são discriminadas. Nos terreiros, elas sentem orgulho de suas crenças, na escola, escondem colares, guias e chegam a dizer que são católicas para diminuir o sofrimento. Em que escola irá se comemorar o Dia do Pai-desanto e da Mãe-de-santo, por exemplo?


5 - Essa disputa política não começou agora
O problema com o ensino religioso nas escolas é antigo e não apenas nosso.
Mas, no Brasil, ele começa com a chegada dos jesuítas ao país em 1549, marcando o início da escolarização brasileira com objetivos colonizadores e de catequese. O domínio dos jesuítas na educação vai durar 210 anos até que, expulsos das colônias portuguesas, o que sobra de ensino no Brasil continua sendo oferecido por outras ordens religiosas. A proclamação da República, em 1889, separa Estado e Igreja Católica, mas só com a Constituição de 1891 haverá a garantia do ensino laico nas escolas públicas e o Ensino Religioso sairá de cena, mas por apenas quatro décadas. Afinal, a mobilização e pressão da Igreja Católica jamais cessariam, o que lhe vem garantindo, desde então,
sucessivas vitórias políticas sobre os setores laicos da educação.


Em 1931, ano da inauguração da estátua do Cristo Redentor (Cunha, 2007), o
Decreto 19.941 facultou a oferta da “instrução religiosa” nas escolas públicas, sendo necessários 20 alunos inscritos e fora do horário das aulas das disciplinas.

Contudo, a Constituição de 1934 garante o status de “matéria” inserida na grade curricular e torna sua oferta obrigatória, ainda que facultativa. Na Constituição de 37 há um pequeno recuo. A obrigatoriedade do Ensino Religioso é substituída pela “possibilidade” e, conforme explica Cunha, a cláusula de dispensa é melhor definida. A Constituição de 46 devolve a obrigatoriedade ao Ensino Religioso, ainda facultativo e, dessa vez, de acordo com a confissão religiosa do aluno. Já em plena Ditadura Militar, a Constituição de 67 garante o Ensino Religioso como disciplina dos horários normais das escolas oficiais do ensino primário e médio, mas conforme artigo da Lei de Diretrizes e Bases
(LDB) de 61, os ônus para os cofres públicos continuam vedados, o que duraria até a LDB de 1971, que revogou este artigo. Foi graças e essa revogação e a pressão dos dirigentes católicos que professores do magistério público de outras disciplinas foram desviados para o Ensino Religioso.


5.1 - As derrotas mais recentes
Da Constituição de 1988 os setores laicos da educação já saíram derrotados
porque a lei manteve o caráter obrigatório para a oferta do Ensino Religioso nos
horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. Minimizando o dano, a LDB de 1996 reincorpora o dispositivo “sem ônus para os cofres públicos”, mas o lobby da Igreja Católica não deixaria por menos e tornaria a derrota ainda pior. É justamente nesse momento que o Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (Fonaper), uma organização composta por cristãos de diversas origens é criado. O então Ministro da Educação, Paulo Renato Souza, propôs alterar a LDB já no momento de sua promulgação e três novos projetos foram propostos, sendo aprovado o do deputado Padre Roque (PT-PR). Tramitando evidentemente em regime de urgência, o projeto
resulta na Lei n. 9475, de 22 de julho de 1997. A LDB é modificada e o Ensino
Religioso é considerado “parte integrante da formação básica do cidadão”. A restrição aos gastos públicos com o Ensino Religioso desaparece e caberá aos estados regulamentarem os procedimentos para definir o conteúdo dessas disciplinas, bem como a forma de selecionar e contratar seus professores.

Estava aberto o caminho para cada  um fazer o que quiser, como bem entender e, por que não, como bem mandar a fé de governos, professores e diretores de escolas?


5. 2 - O obscurantismo do Rio
Presbiterianos e eleitos com largo apoio das igrejas evangélicas, o “casal
Garotinho” não desperdiçou a chance de evangelizar o Estado. Em setembro de 2000, o marido sanciona a Lei 3.459, do ex-deputado católico Carlos Dias (PP-RJ) que estabelece o ensino religioso confessional na rede estadual. Em 2003, a Assembléia Legislativa do Rio tenta modificar a Lei dizendo que ela terá caráter histórico, sem diferenciação de credos. A esposa, já governadora, veta este artigo da proposta e, em janeiro do ano seguinte, realiza o concurso público onde foram aprovados 1299 professores de ensino religioso. O concurso oferecia 500 vagas, todas preenchidas.

Esses professores se somaram aos 364 professores que, amparados pelo Decreto 31086 de 2002, do marido, já haviam sido desviados de outras disciplinas e lecionavam educação religiosa. Em março do mesmo ano, a ALERJ ratifica o veto de Rosinha e o ensino confessional está consumado.

Entrevistei a coordenadora de Ensino Religioso do Rio de Janeiro, Valéria
Gomes, nomeada pela Cúria Diocesana do Rio. De acordo com ela, dos professores aprovados, 68,2% ministra aulas da religião católica. Em seguida vem os evangélicos (26,31%) e os de “outras religiões” (5,26%). Segundo a coordenadora, nesses 5% de outras religiões estão a umbanda (com 5 professores contratados), o espiritismo, segundo Alan Kardek (com 3 professores contratados), Igreja Messiânica (com 3 professores contratados) e Mórmons (com 1 professor contratado). A coordenadora informou ainda que essa divisão foi realizada com base em pesquisa feita em 2001, na rede pública de ensino estadual, que teria revelado que havia 65% de alunos católicos,
25% evangélicos, 5% de outras religiões e 5% sem credo.

Para explicar porque o candomblé ficou de fora, a coordenadora resumiu: “Não
temos registro na pesquisa realizada em 2001 de alunos que praticam candomblé”.

Perguntei se ela tinha conhecimento de que, historicamente, muitas pessoas que cultuam o candomblé omitem sua opção religiosa por medo de serem discriminadas. A coordenadora disse que sim, mas que era difícil mudar essa realidade. Gomes afirmava, contudo, que “não haveria proselitismo”. Outras entrevistas com professores de Ensino Religioso, com diretores de escola e com alunos de candomblé, além de observações em escolas revelariam o contrário.


 
6 - Quem são os meus amigos?
Esta pergunta começa a ser feita na página 32, do volume “O fato Cristão”. Nela
está escrito que existem vários nomes, mas um só Deus, como Olorum, para os afrodescendentes.

Não há problema para a Igreja católica a forma como as religiões nomeiam Deus, isso está claro. Mas as diferenças entre os credos não se limitam ao
nome que conferem ao divino. É evidente que essas concessões feitas pelo material didático buscam somente uma aparência “politicamente correta” e “superficialmente inclusiva e tolerante”. Não fosse isso, os ritos de oferendas de animais praticados pelos candomblecistas não seriam criticados como “práticas que não respeitam a vida”, como já foi mencionado. Esse é um exemplo de limite para o conceito de tolerância. O que é hegemônico aceita apenas e só apenas o que não lhe afeta tanto, o que afinal, não é “tão diferente” assim.

Uma das professoras católicas entrevistadas, referindo-se a seus alunos, me disse uma vez: “A maioria é católica e evangélica, os de candomblé ou não existem ou são bem poucos e temos que ser tolerantes, não há o que fazer.”

Essa fala me leva a um caminho tortuoso. Contudo, é preciso enfrentar essa discussão sem pretender esgotá-la nos limites desse trabalho. O conceito de tolerância é um daqueles que me parece duplo, do tipo xipófago, ou seja, nunca consegui dizê-lo sem dizê-lo grudado no conceito de poder. Dentro das margens do que me proponho discutir aqui, ficarei apenas com Skliar (2003) e com o que ele traz de Bauman (1996).

De acordo com Skliar, a tolerância é uma voz, entre outras, que ressoa com
particular reverberação na retórica e na gramaticalidade do espaço multicultural.

“Tolerar o outro, tolerar o que é o outro, tolerar a diversidade, tolerar a diferença; fazer da tolerância um princípio indesculpável, uma fonte de conhecimento, um lugar de comunicação. Então: voltemos a olhar bem a gramática/retórica da tolerância”.

(Skliar, 2003:131). Este autor insiste que a essência da vida moderna constitui um esforço para exterminar a ambivalência, isto é, uma intenção voraz por definir com a máxima precisão e para eliminar toda ambigüidade.

E é justamente por essa razão que a intolerância acaba sendo uma inclinação natural (1) da modernidade, pois a construção da ordem estabelece limites para a incorporação e para a admissão de qualquer entidade, de qualquer sujeito, de qualquer alteridade, de qualquer outro. Permanece sempre a vontade de acabar com a ambigüidade e, portanto, de manter a intolerância, inclusive quando ela se esconde sob a máscara da tolerância. Uma máscara que, como diz Bauman (1996,p.82), pode ser assim mais bem expressa: você é detestável, mas eu, sendo generoso, vou permitir que continue vivendo. (op.cit,132).

1 Eu apenas trocaria “natural” por “social” posto que as intolerâncias são construídas socialmente a partir das contradições de classe e cultura.


Para Skliar, ao se compreender a tolerância como uma virtude natural ou
como uma utopia incontestável, ignora-se também a relação de poder que lhe dá razão e sustento. E, de novo, cita Bauman:

"A tolerância não inclui a aceitação do valor do outro; 
pelo contrário, é uma vez mais, talvez de maneira mais sutil e subterrânea, a forma de reafirmar a inferioridade do outro e serve de ante-sala para a intenção de acabar com sua especificidade – junto ao convite ao outro para cooperar na consumação do inevitável. A tão aclamada humanidade dos sistemas políticos tolerantes não vai além de consentir a demora do conflito final." (apud. Skliar, 2003:133).


O conflito final citado por Bauman é entendido por Skliar como acabar com a
especificidade do outro e torná-lo cúmplice de seu aniquilamento. “A inevitabilidade da mesmidade do outro, do outro como o mesmo. Sua inferioridade. O outro como um suspenso adiável. Seu mistério alienado pela tolerância. Reduzido pela tolerância. Apagado pela tolerância”. (op.cit.133).




6. 1 - Aliança católica-evangélica
Voltando a pergunta “Quem são os meus amigos”? iniciada na página 32 de “O
fato Cristão”. Ali, a resposta vai rapidamente “tolerar” o “outro” que nomeia o mesmo Deus de forma diferente: “Tantos povos e um só Deus. Tantos nomes, mas um só Deus.

Os hebreus o chamam Adonai; os mulçumanos, de Alá; os índios guaranis, de
Nhanderu; os afro-brasileiros de Olorum”, mas fica por aqui o “Diálogo de Esperança”, que dá título a esse capítulo do material analisado. Rapidamente o livro abandona esses “outros” e, ao falar da “Consciência de que somos todos irmãos”, vai dizer: “Os cristãos, católicos, protestantes e ortodoxos, anunciam ao mundo o amor de Cristo, o Filho de Deus. Nossa missão de trabalhar unidos por um mundo melhor, mais justo e fraterno, vai enfim construir a paz.” (pg.36). Fica evidente que a “consciência fraterna” deixa de fora os que nomeiam Deus de forma diferente e, da mesma forma que não insere esses “diferentes” no trabalho de construção de um mundo melhor.

Podemos resumir assim: o material didático católico torna cúmplices os
“diferentes”, ao mencioná-los na página 32, tolerando que chamem Deus de forma diversa (desde que seja o mesmo Deus único), depois pode anulá-los na página 36 onde desaparecem e sequer são mencionados como irmãos, para, enfim, aniquilá-los na página 38 conclamando: “Todos os povos louvem o Senhor”. Como se “todos os povos”, tivessem o “mesmo Senhor”, ou “algum Senhor”.

Ressalto, ainda, que nas páginas 38 e 39 existe uma belíssima ilustração do
Cristo Redentor. Em seu braço direito foram desenhados cinco meninos de cores e raças diferentes representando, evidentemente, a pluralidade da sociedade brasileira. Presente, o negro serve para “simular” uma democracia racial, inexistente em nosso país. De novo: aqui só importa assegurar a “aparência politicamente correta”. Mesmo que o desenho seja de um menino negro, este está inserido em situações que desprezam que o candomblé, por exemplo, seja uma parte fundamental das culturas afro-descendentes. O desenho de um menino negro serve para reforçar a dominação branca.

Além disso, em centenas de ilustrações dos quatro volumes analisados, em
apenas um deles (A Igreja de Cristo) existem raros desenhos de negros em situações concretas. Na página 46, há um menino negro desenhado ao lado de uma menina e outro menino brancos recebendo aulas de um professor branco e louro. Na página 75, um casal inter-racial batiza seu filho. Na página 80, mulheres e crianças negras em situação cotidiana sim. Mas como? Em uma ilustração que parece representar uma comunidade pobre, ao fundo, uma mulher negra carrega uma lata de água na cabeça e outra, com o filho nos braços, e reunida com crianças negras, ouve Jesus falar. Ou seja, para
representar o professor, o desenho é de um homem branco e louro, para carregar a lata de água na comunidade, a mulher negra. Os velhos preconceitos dos livros didáticos denunciados e combatidos por tantos professores e professoras preocupados com essa questão são mais uma vez reforçados. Sem falar que onde aparecem representados em situação de fé, nenhum traço das religiões afro-descendentes, apenas do catolicismo.Enfim, as ilustrações reforçam o que diz a página 36 deste volume: “Todos os povos louvem o Senhor”. Para serem tolerados e inseridos todos devem obedecer as regras da subalternidade e da fé católica.

Assim, os livros didáticos católicos vão reforçar e continuar a aliança entre
católicos e evangélicos que já vem sendo estabelecida na prática cotidiana da sala de aula do Ensino Religioso. Para não termos dúvida, voltemos para mais duas entrevistas com professoras desta disciplina. Uma professora católica diz como seleciona conteúdos: “Uso textos do Padre Marcelo Rossi e também a bíblia, selecionando os trechos comuns a católicos e evangélicos”.

Já uma outra educadora evangélica afirma:
“No ano passado eu tinha uns 8 alunos que eram ogans, que se convenceram que estavam errados e hoje são cristãos. Quando somos tolerantes eles acabam entendendo que estão errados.”

A “cooperação” entre católicos e evangélicos também pode ser notada na própria Coordenação de Ensino Religioso, órgão da Secretaria Estadual de Educação. Lá, apenas católicos e evangélicos possuem representação em Departamentos. A chefia da Coordenação é católica e nomeada pela Arquidiocese, que também nomeia a diretora do Departamento de Ensino Religioso Católico. Já a diretora do Departamento de Ensino Religioso Evangélico é nomeada pela Ordem dos Ministros Evangélicos do Brasil. Por telefone, a diretora desse último, que preferiu se identificar apenas por Vera Lúcia disse:
“Nós não temos ainda nosso próprio material específico didático. Por enquanto,
usamos os livros que foram cedidos pela Sociedade Bíblica do Rio de Janeiro. Fizemos um levantamento de seus livros didáticos e escolhemos os que tinham a ver com nosso plano básico. Trabalhamos de maneira amigável com os católicos”. Perguntei a ela porque as outras religiões não estavam representadas em departamentos e a diretora respondeu: “Não, aqui, só os nossos”.

Vamos deixar um pouco os livros didáticos e os textos de nossos teóricos e ler,
juntos, uma notícia da página 11, do Caderno O País, do Jornal O Globo, desse domingo calorento demais que foi o 13 de abril de 2008:

“O senador,“ex-bispo” da Igreja Universal do Reino de Deus e pré-candidato do PRB à Prefeitura do Rio, Marcelo Crivella, anda circulando com desenvoltura em
ambientes que vão dos salões da Arquidiocese do Estado do Rio às quadras das
escolas de samba”(...) Há 15 dias, Crivella participou de uma reunião plenária da Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. (...) Como evangélico, Crivella continua frequentando os cultos da Igreja Universal e discursando nos púlpitos. Mas, como pré-candidato, também tem procurado outras religiões: já teve pelo menos um encontro com o arcebispo emérito do Rio de Janeiro, Dom Eugenio Sales. Ainda para tentar atrair os católicos, deve sacramentar a aliança com o PTB, que apresenta como candidato a vice o ex-deputado estadual Carlos Dias, ligado ao movimento carismático da Igreja Católica”.

Ora, se não é o mesmo Carlos Dias, autor da Lei do Ensino Religioso Confessional aprovada no Rio. A escola é, de fato, um mundo social e para
compreender as alianças táticas em seu interior é preciso olhar para além de seus muros e ver como essas alianças estão articuladas para objetivos estratégicos fora e dentro dela.


7 – Bolinhos de chuva e a construção do conhecimento
Quando eu era criança uma das coisas que mais gostava de fazer era observar
minha avó na cozinha. Até hoje, este é um dos lugares preferidos de minhas lembranças.

Eu chegava da escola, almoçava, ajudava com a louça e sentava na enorme bancada de mármore da pia para vê-la preparar alguma delícia para o lanche das tardes. Ali eu ouvia da família que ficara na Itália, de cinema, de canções e histórias que ela gostava. Certa tarde, a guloseima da vez eram seus famosos bolinhos de chuva. Como sempre, dona Maria misturava o leite morno à farinha e eu, que já reivindicava há tempos ajudar, pedi para quebrar os ovos. Foi quando ela me disse: “Isso não é assim não filhinha! Isso tem C I Ê N C I A!” Dali para frente não mudaria. Toda vez que minha avó queria dizer que
algo pedia uma metodologia mais complexa e algum experimento prático cujo resultado exigisse comprovação, ela empostaria a voz e repetiria a frase “Isso tem C I Ê N C I A”, com as sílabas bem separadas.

Naquela mesma bancada, minha avó que era muito católica, já tinha me dito
havia algum tempo que, para acreditar que um dia eu conheceria sua mãe, minha bisavó, no céu, era preciso ter FÉ. “Tem coisa filhinha, que só tendo muita FÉ!”. Já FÉ, ela pronunciava num monossílabo forte, definitivo e encerrado. Então, foi na cozinha de minha avó que comecei a aprender que havia campos diferentes de saber e modos diferentes de perceber, conhecer e interpretar a vida. Alguns diriam respeito à ciência, outros, à fé. Aos poucos as coisas que precisavam ficar mais claras sobre a ciência ficaram mais claras na escola, com tudo o que o mundo da escola trazia: professores, professoras, colegas, livros, cinema. E, as que precisavam ficar mais claras sobre a fé
ficaram mais claras na igreja, que eu também freqüentava desde pequena, e com tudo o que o mundo da Igreja significava: padres, freiras, colegas, catequese, missas, livros, grupo jovem, cinema.

Alguns amigos e amigas trilharam semelhante caminho e, em algum ponto,
tomamos diferentes direções. No meu caso, deixei de ter fé e abandonei a religião.

Julguei que, por mais que a ciência e os cientistas não tivessem e não tenham todas as respostas para todas as questões sobre o universo, não significava e nem significa que existisse uma força divina e, portanto, sobrenatural por traz dessas lacunas. Mesmo que não venhamos a conhecer tudo em nossa limitada e curta história da humanidade.

Outros seguem acreditando e conciliando ciência e fé num equilíbrio que confere
sentido à suas vidas. A minha, que, para mim, não concilia, também é plena de sentido.

Olhando para trás percebo que um elemento foi fundamental nas minhas opções
de vida: a escola me garantiu autonomia de pensamento. A mesma autonomia que fez com que diversos colegas de escola mantivessem sua fé em diferentes modos de expressar e viver a religiosidade.

Para a minha avó, a ciência organizava uma certa maneira de pensar e fazer
certas coisas que ia garantir, numa significativa quantidade de vezes, que, misturados os ingredientes tais e de uma maneira específica, seus bolinhos de chuva saíssem daquela forma e não de outra. É claro que, como toda ciência séria, é preciso considerar as variáveis e as famosas circunstâncias. Os modos como farinhas são produzidas, vendidas e armazenadas, o estado dos ovos e mesmo as motivações e o estado de espírito da minha avó. Isso serve tanto para os bolinhos de chuva, como para os cientistas e a clonagem, a engenharia genética, as investigações sobre o universo. Já o campo da fé organizaria e daria soluções para outras coisas importantes para ela. Por exemplo, a saudade que ela sentia de sua mãe.

O problema é quando, na escola, se mistura uma coisa e outra. É misturar numa aula de ciências, bolinhos de chuva e vida após a morte. Para a primeira, ainda que com sabores ou recheios diferentes, haverá possibilidades de verificar a eficácia ou não de sua produção. Para a segunda, 50 alunos darão 158 respostas diferentes.

Definitivamente, a sala de aula não deve ser o espaço de legitimação de nenhuma delas e, para mim, por dois motivos. Primeiro, porque nenhuma das 158 respostas são comprovável, a não ser no espaço íntimo da fé de cada um.

Segundo, porque empoderando e legitimando uma, ou as semelhantes em aspectos fundamentais, outras tantas seriam excluídas e desempoderadas. E claro que 158 foi um chute.

Concordando com o físico brasileiro Marcelo Gleiser, também não acredito que
a função da ciência deva ser “tirar Deus das pessoas”. Para ele, muitos cientistas acreditam que o estudo da ciência serve para comprovar a beleza da criação, mas a religião não pode pretender ocupar o lugar da ciência.

Eu, que não mais acredito em um plano divino para o progresso da humanidade
e sim que a história se transforma em função dos conflitos econômicos e sociais(Marx, 2007), imagino apenas a seguinte situação: à noite, deitada com o meu amor, nas areias de uma praia, na Ilha Grande, olhamos o céu e suas incontáveis estrelas. Sei que para os candomblecistas, Ólorum criou tudo isso e para os católicos, o Deus dos católicos. Já para alguns cientistas o universo é tão perfeito que não há nada que um Deus possa fazer e outros dirão que justamente essa perfeição revela a existência de Deus. De minha parte, só acho um privilégio danado poder apreciar essa beleza imensa. Seja quem ou o que for que a tenha criado ou que, como penso, ela simplesmente tenha surgido por pura sorte nossa.


8 – Devolver a laicidade do Estado e da escola
Considerações finais
Marcado pela desigualdade, pela ausência de projetos políticos transformadores
e pelo elevado índice de violência, o Estado do Rio se tornou ideal para, como vimos, propiciar a união do poder político e de fundamentalismos religiosos seja de evangélicos, neo-evangélicos ou católicos. Em 2004, Rosinha Garotinho definiu que o tema daquele ano para as aulas de religião na rede pública seria “criação” e que o criacionismo seria discutido nas escolas. Três anos depois, usando de seu poder econômico, a Igreja Católica lança seus livros didáticos onde o criacionismo é um dos carros-chefes. A escola, nesse momento, representa um mercado religioso a ser dividido e conquistado por esta aliança evangélico-católica que deixa de lado antigas divergências em benefício de interesses religiosos e políticos maiores. Os livros didáticos católicos, que trabalham temas comuns com os evangélicos, representam mais um componente nesta relação que vem se amalgamando.

Essa absurda realidade se tornou possível por dois motivos: a Igreja Católica, há mais tempo empenhada em manter sua hegemonia, nunca abriu mão de ver a escola pública como um lugar de catequese, por outro lado, os setores laicos da educação se retiraram da batalha, incluindo sindicatos e associações. Há algumas resistências importantes, como o Projeto de Lei número 1069/2007, de autoria do Deputado Estadual Marcelo Freixo que revoga a lei 3459/2000 e retira a confessionalidade do Ensino Religioso. Evidente está que não há pressa para sua tramitação. Como a obrigatoriedade do Ensino Religioso é uma Lei Federal, não pode ser extinta por uma lei estadual. Isso, no entanto, não deve ser o limite, nem o horizonte dessa disputa.

Logo depois de assumir, o ex-secretário de Educação do Rio, Nelson Maculan,
declarava aos jornais, no dia 13/4/2006, que pretendia acabar com o ensino religioso confessional e nunca mais tocou no assunto. Parece que o assunto também não existe para a nova secretária Tereza Porto. O silêncio interessa aos setores envolvidos na aliança católico-evangélica, que, devagar e em surdina conseguiu acabar com a laicidade do Estado do Rio. Aos professores e professoras que defendem que escola não é lugar de qualquer religião, nenhum silêncio interessa. O GT de currículo e o GT afrodescendente, em especial, precisam garantir essa discussão e denunciar, na ANPED e fora dela, o crime que o Estado do Rio comete.



Referências bibliográficas

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seminário internacional. In: Educação e Sociedade, 97. V.27 – set/dez-, São Paulo:
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FORQUIN, Jean-Claude, Escola e Cultura – as bases sociais e epistemológicas do
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__________________________________, A Igreja de Cristo. Rio de Janeiro: Vozes,
2007
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17
SKLIAR, Carlos, Pedagogia (improvável) da diferença – e se o outro não estivesse aí?
Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
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