sexta-feira, 11 de março de 2011

Valores machistas e “inconsciente androcêntrico” ainda predominam nas relações, diz socióloga

9/3/2011
 http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=41200

 
A relutância de juízes e delegados de Polícia em aplicar a Lei Maria da Penha é uma forma explícita de tentar manter a desigualdade entre homens e mulheres, afirma a socióloga Patricia Castro Mattos. Ela acredita que, além das formas de violência descritas na lei, existem outras formas de “violência simbólica” que perpetuam padrões de comportamento e os desequilíbrios entre os homens e as mulheres. A eleição da primeira presidenta do Brasil aponta para o questionamento da “ordem natural dos sexos”. “Há uma mudança simbólica relevante na eleição de Dilma [Rousseff] que não pode ser ignorada”, revela.


Entretanto, segundo ela, não se pode ser excessivamente otimista e afirmar que o Brasil é menos machista por ter eleito uma mulher para a Presidência da República. A intelectual coordena o Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ), em Minas Gerais, e é professora do Departamento de Ciências Sociais. Em sua opinião ainda estão presentes no país “padrões de percepção, avaliação e comportamento androcêntrico [supervalorização do ponto de vista masculino], machista e sexista”.

Eis a entrevista a Gilberto Costa da Agência Brasil, 08-03-2011.
É possível dizer que a relação entre gêneros tende a ser mais equilibrada ou mais favorável às mulheres de classe social mais alta?
O fato de as mulheres entrarem no mercado de trabalho, seu maior acesso à instrução formal e sua consequente independência financeira tendem a gerar fricções que podem questionar a “ordem natural dos sexos”, gerando, assim, a possibilidade de mudanças no regime de gêneros.
E, nesse caso, as mulheres das classes média e alta, devido ao seu posicionamento social, são privilegiadas em relação às mulheres da classe baixa e tendem a ter relações mais equilibradas com os homens. Isso não significa afirmar, de modo algum, que os padrões de percepção, avaliação e comportamento androcêntrico, machista e sexista não estejam presentes nas relações e práticas sociais e institucionais dessas mulheres privilegiadas.
Tenho notado em minhas pesquisas com mulheres de classe média que aquelas que conseguiram uma colocação bem-sucedida no mercado de trabalho, em muitos casos, tendem a apagar as desigualdades de gênero e ressaltar toda a ideologia meritocrática, ainda que elas relatem sofrer, das mais variadas maneiras, “violência simbólica”, que é aquela forma de violência “suave”, que não é percebida enquanto tal pelas suas próprias vítimas. Já com as mulheres de classe baixa, as violências manifestas, abertas, efetivas são mais evidentes e expostas. Com isso, não estou dizendo que as mulheres das classes média e alta não sofram violências físicas, abusos e explorações, mas que esse tipo de violência, nesse estrato social, não tem a mesma visibilidade que para a classe baixa. Ainda que o “inconsciente androcêntrico” esteja presente nas relações e práticas sociais e institucionais de homens e mulheres em geral, de forma transclassista, creio que na classe baixa o sexismo e o machismo sejam encontrados de maneira mais caricata, mais bruta do que nas classes média e alta.

Como se perpetuam, nas diferentes classes, os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres?
A velha e tradicional divisão sexual do trabalho, na qual os homens são exclusivamente responsáveis pelo ganha-pão e as mulheres pelo trabalho doméstico e cuidado com os filhos não condiz mais com a realidade vivida por homens e mulheres no Brasil. No entanto, esse “inconsciente androcêntrico” presente em nosso imaginário social, que coloca as mulheres como depositárias do afeto e do sentimento e os homens da razão, é atualizado constantemente em nossas práticas e relações sociais e institucionais. Recordo-me de uma propaganda veiculada em canais de TV aberta há alguns anos, na qual uma garotinha, falando com seu pai ao celular, tenta, apesar da distância entre eles, matar a saudade aproximando o celular de todas as coisas que reproduzem o barulho da casa (o tic-tac do relógio, a gravação do ursinho de pelúcia etc.). A mensagem da propaganda era: “Fique mais perto de seu pai, pois, como se sabe, o pai está sempre longe”.
A representação simbólica que está posta nessa propaganda reproduz a ideia de que pai longe é coisa natural e esperada. O mesmo pode ser percebido quando voltamos o nosso olhar para as brincadeiras de crianças. Certa vez, observando a interação entre meninos e meninas numa festa infantil, na qual as crianças se entretinham jogando videogame, pude notar uma divisão clara entre os papéis assumidos pelas crianças. Enquanto os meninos jogavam, as meninas, além de ficar olhando os meninos competirem, contentavam-se em servi-los com refrigerantes. Quando eu lhes perguntei por que as meninas não participavam da brincadeira, eles me responderam que eram elas que desejavam espontaneamente assumir esse papel. Surpreendeu-me constatar que, a despeito da tenra idade e das transformações vividas pela geração dos pais dessas crianças, elas ainda reproduzem em suas brincadeiras o imaginário androcêntrico e sexista denunciado há 60 anos por Simone Beauvoir.

No texto A dor e o estigma da puta pobre a senhora aponta que é comum na história de vida das mulheres entrevistadas um tipo de socialização disruptiva, marcado, entre outras coisas, pela ausência paterna (e agravada com situações de abuso sexual). Há um número crescente de famílias sem pais, que impacto isso pode ter na formação das meninas e dos meninos?
Quando eu ressaltei a ausência paterna e a questão do abuso sexual como marcas desse tipo de socialização disruptivo [com rupturas], procurei demonstrar como a socialização familiar das prostitutas entrevistadas não lhes havia dado, quando crianças, a sensação de se “saber amada e protegida” e, mais ainda, não lhes possibilitou o aprendizado pré-reflexivo, a partir dos exemplos dos pais, de uma “economia emocional”. Não se pode, no entanto, tornar essencial a figura paterna sob o risco de se reproduzirem os papéis sociais tipicamente masculino e feminino e ratificar, pura e simplesmente, a velha “ordem natural dos sexos”. Nesse sentido, as novas configurações de família – chefiadas unicamente por mulheres, por casais homossexuais etc. ou aquelas nas quais as mulheres é que exercem o papel de domínio – podem ser bem-vindas e propiciar o questionamento dos esquemas de percepção, de avaliação e de comportamento androcêntrico, sexista e machista.

Há magistrados que consideram a Lei Maria da Penha inconstitucional e em algumas delegacias evita-se fazer o registro de violência como agressão do cônjuge. Como a senhora vê a relutância de alguns juízes e delegados em aplicar a lei?
Uma das formas mais eficazes de manutenção da dominação social injusta, como bem denunciaram todos os movimentos de minorias, com destaque para o movimento feminista, é quando os dominantes recorrem ao universalismo, à igualdade de direito para reproduzir e legitimar a desigualdade de fato. É com base nesse universalismo – no texto constitucional que diz que todos são iguais perante à lei - que juízes questionam a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, por ela garantir um tratamento especial e diferenciado às mulheres vítimas de violências físicas e todo tipo de abuso.

No artigo A mulher moderna numa sociedade desigual, a senhora assinala que “as mulheres não parecem ter descoberto uma forma expressiva de vivenciar sua condição (…) mas, sim, parecem ter tomado o modelo masculino como modelo a ser seguido”. É correto dizer que o que é atribuído ao universo masculino ainda é mais valorizado socialmente?
Não há dúvida de que a priorização dos gêneros, que está por trás da divisão social dos papéis feminino e masculino, é baseada num sistema de classificação/desclassificação social que coloca as características tidas como tipicamente masculinas como a supremacia da razão sobre os sentimentos e as emoções, tidas como tipicamente femininas, como sendo socialmente mais valorizadas. É bem verdade que a entrada das mulheres no mercado de trabalho competitivo, a possibilidade de as mulheres ocuparem cargos de poder e prestígio social, ainda que se possa perceber nitidamente a permanência da desigualdade entre os gêneros quando analisamos a colocação das mulheres no mercado de trabalho, abre o campo para uma luta simbólica a favor das mulheres que pode permitir a desconstrução da priorização dos gêneros. No entanto, como toda a estrutura do capitalismo está baseada na ideologia meritocrática e no consequente apagamento das relações assimétricas entre os gêneros, o grande desafio das mulheres é descobrir uma forma expressiva de vivenciar sua condição não tomando o modelo masculino como modelo a ser seguido.

O Brasil que, agora, tem uma presidenta é um país menos machista? É possível assinalar alguma mudança em pouco mais de 60 dias de poder?
Essa é a questão mais espinhosa para ser respondida. O risco de toda análise conjuntural é sempre incorrer na simplificação da compreensão sobre o mundo social. O grande desafio da teoria crítica é mostrar a complexidade do mundo social e questionar todo tipo de pensamento, visão, ideologia que o conceba como algo dado, como inevitável e que sirva para perpetuar e legitimar a dominação social injusta. Uma das formas mais eficazes de perpetuação da dominação é ver mudança onde existe permanência e conservação. Sem dúvida, a eleição da presidenta aponta para o questionamento da “ordem natural dos sexos”, na qual o espaço público e as posições de poder são reservados aos homens. Há, portanto, uma mudança simbólica relevante na eleição de Dilma que não pode ser ignorada ao se vislumbrar “outros possíveis”, isto é, outras formas de ser e atuar no mundo para as mulheres. No entanto, o legado que o pensamento crítico nos deixa é a tarefa de sopesar a importância da eleição de uma mulher para o cargo de maior poder político. Não podemos correr o risco de ser excessivamente otimistas e deterministas ao afirmarmos que o Brasil é menos machista por ter eleito uma mulher para a Presidência da República, sem levar em conta a força da “violência simbólica”, que perpetua a dominação social injusta, ao ressaltar a mudança, valendo-se da generalização de histórias de vida singulares.

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